quarta-feira, 26 de março de 2014

fugiu da guerra pra morrer no brasil




Sírio escapa da morte na guerra, foge 



com a família, mas morre em SP


Conheça a saga de engenheiro de 37 anos que deixou mulher e filhos 
Segundo ONGs e líderes religiosos, é o 1° refugiado sírio a morrer no Brasil.

Flávia MantovaniDo G1, em São Paulo

Homem ajeita o corpo de Mohamed na sepultura no cemitério islâmico de Guarulhos (Foto: Gabriel Chaim/G1)Homem ajeita o corpo de Mohammad na sepultura no cemitério islâmico de Guarulhos (Foto: Gabriel Chaim/G1)
Uma lágrima grossa escorreu no rosto branquíssimo da síria Razan. Usando um casaco longo bege e a cabeça coberta por um lenço branco estampado com flores pretas, a mulher bonita, de 33 anos, acabara de voltar da sepultura do marido no Cemitério Islâmico de Guarulhos (SP).

Segundo a comunidade árabe da cidade, é o primeiro refugiado sírio a morrer no Brasil. Entidades que prestam assistência a essas pessoas, como a Caritas SP e o Instituto de Migrações e Direitos Humanos, afirmam que este é o primeiro caso do qual foram notificados. Ele morreu devido a complicações relacionadas a problemas cardíacos.

O nome dele era Mohammad. No último dia 21 de janeiro, havia completado 37 anos. Junto com Razan e seus três filhos – dois meninos de 9 e 12 anos e uma menina de 2 anos --, ele chegou ao Brasil em maio do ano passado, com o objetivo de deixar para trás a guerra que há três anos atinge seu país, a Síria.
O sobrenome de Mohammad não vai ser citado nesta reportagem para preservar a família, que teme represália na Síria. Fragilizada, Razan também não quis dar entrevista. A reconstituição de sua história foi feita pelo G1 com base em depoimentos de amigos que o acompanharam em sua estadia de quase um ano no Brasil.
Tortura
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Amigos velam o corpo de Mohamed (Foto: Gabriel Chaim/G1)Amigos velam o corpo de Mohammad (Foto: Gabriel Chaim/G1)
Natural de Arbeen, cidade na periferia de Damasco que concentra muitos opositores ao regime, Mohammad chegou ao Brasil contando que foi preso e torturado com eletrochoques até quase morrer.
O motivo de sua detenção não ficou claro: um dos entrevistados diz que soldados do Exército de Bashar al-Assad encontraram em seu celular fotos de manifestações antirregime, mas os demais afirmam que ele foi preso aleatoriamente, apenas por morar em um lugar onde há muitos rebeldes.
Dado como morto, ele foi jogado inconsciente em uma vala. Um passante viu que seu corpo se mexia e o levou ao médico, com a pressão arterial quase zero. Após 40 dias no hospital, recuperado e com medo de ser capturado novamente, fugiu para a Turquia com a família.
Apesar de alguns amigos de Mohammad no Brasil acreditarem que foi a tortura que provocou o problema cardíaco, o cardiologista Kalled Reda el Hayek, que o atendeu há alguns meses em São Paulo, afirma que não há relação entre os dois fatos. Ele diz que Mohammad já usava uma válvula artificial no coração antes de ser preso e que tudo indica que ele já nasceu com problemas cardíacos.
Segundo Hayek, o problema é que a prótese era de má qualidade e acabou infeccionando por problemas diversos, como o tabagismo e má saúde bucal.
Noite no Aeroporto de Guarulhos
Amigos velam o corpo de Mohamed no cemitério islâmico de Guarulhos (Foto: Gabriel Chaim/G1)Amigos velam o corpo de Mohammad no cemitério islâmico de Guarulhos (Foto: Gabriel Chaim/G1)
Mohammad, Razan e os filhos vieram para o Brasil por não se adaptarem à Turquia. Eles foram orientados a procurar uma mesquita em Campinas quando chegassem. 
A primeira noite a família passou no Aeroporto de Guarulhos. Preocupado e com os pés inchados por causa do problema de saúde, Mohammad não conseguiu dormir. No dia seguinte, Razan e os filhos foram para um hotel nas redondezas e ele viajou até Campinas, onde foi orientado a voltar à capital.
Amigos se debruçam sobre o corpo durante o enterro (Foto: Gabriel Chaim/G1)Amigos ajeitam sepultura (Foto: Gabriel Chaim/G1)
“Me ligaram de lá dizendo que não tinham como ajudar e eu disse para enviá-lo para cá”, conta o xeique Mohamad Al Bukai, da Mesquita de Guarulhos. Hoje, a comunidade religiosa abriga cerca de 40 refugiados e acompanha outros tantos, mas Mohammad foi um dos primeiros a chegar lá.
A família recém-chegada foi acolhida na casa de um casal de sírios que mora no Brasil há mais de 30 anos, no Brás, e que cedeu o próprio quarto para que eles se alojassem durante 40 dias, até que se mudaram para um apartamento nas redondezas. A mulher, que também é de Arbeen, é irmã de uma ex-professora que deu aula para Mohammad na infância.
Engenheiro da computação, Mohammad começou a trabalhar em casa, consertando computadores, tablets e celulares.
Ele também criou um aparelho que podia ser conectado à TV e sintonizava diversos canais árabes no Brasil – a invenção era vendida para a comunidade árabe da cidade por R$ 700. “Ele era muito inteligente”, foi o que a reportagem do G1 escutou de todo mundo que se referia a ele.
O sírio Amer Masarani beija o corpo do amigo (Foto: Gabriel Chaim/G1)O sírio Amer Masarani beija o corpo do amigo
(Foto: Gabriel Chaim/G1)
Cirurgia
Fluente em inglês, o sírio estava empenhado em aprender a falar português e ia com Razan e a filha pequena a todas as aulas do idioma que acontecem três vezes por semana na Mesquita do Pari.
Era engajado na batalha para conseguir ajuda para seus conterrâneos e participou de três reuniões sobre a situação dos refugiados com a Prefeitura de São Paulo.
Também era teimoso e evitava ao máximo ir ao médico. Algumas vezes passou mal na aula de português e chegou a cair desmaiado, mas não aceitava ir ao hospital e queria sempre ser cuidado em casa. Até que sua situação piorou.
Após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) e um infarto, ficou internado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde foi operado no dia 15 de março. A válvula mecânica foi trocada por uma biológica, mas ele já estava muito fraco e seus rins pararam de funcionar. Mohammad ainda abriu os olhos em uma ocasião, alguns dias depois da operação, e pôde ver Razan. Mas morreu na última sexta-feira (21), às 6h da manhã.
Resguardo da viúva
Razan, a viúva (à dir.,), no velório do marido (Foto: Gabriel Chaim/G1)Razan, a viúva (à dir.,), no velório do marido (Foto: Gabriel Chaim/G1)
Cerca de 70 homens compareceram ao enterro de Mohammad na sexta-feira. Eles ocuparam todas as cadeiras de um lado da sala onde o corpo era velado enrolado em um lençol branco, e alguns tiveram que ficar de pé. Do outro lado da sala, Razan era consolada por cinco mulheres. As crianças ficaram com uma amiga.
O xeique Al Bukai fez a celebração religiosa, e os amigos ajudaram a carregar o corpo até a sepultura, onde ele foi enterrado sob uma chuva fina.
Razan agora terá que ficar quatro meses e dez dias em período de resguardo – chamado, no Islã, de “iddah”. Nesse período, ela deve permanecer na casa onde morava com o marido, não deve usar roupas bonitas, joias, perfume ou cosméticos e não pode receber propostas de casamento.
O xeique Al Bukai diz que a comunidade vai acompanhar a família para se assegurar de que não lhes falte nada. Segundo uma amiga de Razan, ela deve ficar no Brasil, onde está segura e tem o apoio de amigos. “O Mohammad veio com essa ideia na cabeça, de construir algo melhor para seus filhos no Brasil. A vida agora continua”, disse.

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